ARTIFEX: ARS CARTOGRAPHICA
No decorrer dos séculos XV e XVI, actividades como a cartografia, o desenho e a pintura não possuíam qualquer distinção estatutária entre si. Eram executadas por artífices que integravam um vasto grupo designado por «ofícios mecânicos» e que comungava dos atributos habitualmente conferidos ao Artifex. Por Artifex entendia-se um especialista em qualquer arte, um artífice, um artesão, um artista, um executante ou criador, independentemente da natureza científica ou artística da sua actividade. Não constitui novidade a existência, no decorrer dos séculos XV e XVI, de um elevado espirito de descoberta e cooperação entre actividades que faziam uso comum do desenho, da matemática e da geometria. Arte e ciência partilharam, de facto, métodos e disciplinas comuns em prol de um só objectivo ? conhecer, compreender e representar o mundo. Esta problemática tem constituído uma preocupação recorrente tanto do campo da história como da filosofia da ciência. Porém, e dada a natureza especifica deste campos, as conclusões obtidas não reflectem nenhumas das preocupações exclusivas e intrínsecas à historiografia da arte. As características singulares do panorama artístico e científico português no decorrer dos séculos XV e XVI, assim como, a sua ligação intrínseca às actividades de navegação, impõem uma renovação desta investigação de forma a colmatar múltiplas questões ainda em aberto: Qual o teor das relações detidas entre cartógrafos e pintores? Como é que se processaram as trocas epistémicas entre estas duas actividades? Qual o grau de interacção no que concerne aos fundamentos científicos da perspectiva e da geometria aplicada à pintura e à cartografia? Haveria participação de pintores na decoração dos mapas, cartas de marear e atlas? De que forma essa colaboração terá influenciado as representações paisagísticas do vasto espaço exo-europeu? Qual o grau de contaminação imagética dos modelos europeus nesse processo? Existiram pintores a bordo das naus? Se sim, qual a sua função? A crescente cientificação da arte corresponderá à presença da matemática, da geometria e da cartografia no quotidiano da corte? Essas manifestações serão contemporâneas ou correspondem a ciclos políticos distintos? E por último, a questão magna que se impõem forçosamente: será possível desenvolver uma metodologia adequada que permita responder globalmente a todas estas questões? A existência de inúmeras fontes documentais de tipologia diversa permitem responder afirmativamente a esta ultima questão. Existem, de facto, três tipologias distintas de elementos, que pela sua natureza heterogénea, não foram até há data alvo de uma análise de conjunto: listas exaustivas de inventários de artífices dos séculos XV e XVI; um vasto acervo pictórico produzido entre a segunda metade do século XIV e finais do século XV; um vasto acervo cartográfico dos séculos XV e XVI. É certo que esta temática tem sido recorrentemente abordada tanto em congressos como em publicações, demonstrando a inequívoca centralidade do tema. No entanto, o problema destas abordagens reside no facto de se limitarem ao estudo de casos individualizados, estudos esses que não conduzem a uma visão de conjunto do fenómeno, nem viabilizam a percepção dos fluxos de manifestação das diversas actividades por regiões e períodos cronológicos distintos. O projecto Artifex: Ars Cartographica propõe-se assim colmatar esta lacuna através da criação de uma base de dados multidisciplinar que seja capaz de convergir o vasto elenco documental de cartógrafos, astrónomos, mestres de cartas de marear, matemáticos, debuxadores e pintores activos no reino durante os séculos XIV, XV e XVI; com o legado imagético, pictórico e/ou cartográfico, atribuível a cada um deles. A informação daí decorrente permitirá uma visão global da questão em dois campos amplamente promissores: a) tratamento estatístico dos dados por grupos de artífices, períodos de actividade e correspondência global à diversas estratégias implementadas no reino; b) organização sistemática e tipológica dos elementos imagéticos obtidos nas categorias de pintura, desenho e cartografia - e nas subcategorias de representação humana, paisagística, animal e vegetal. Este processo facilitará a confrontação em larga escala de tipologias específicas de representações, que se crê reveladoras de parcerias existentes entre pintores, cartógrafos e mestres de cartas de marear. Este projecto oferecerá assim, a possibilidade inédita de determinar e compreender os processos de cooperação entre cartógrafos e pintores, revelando Trading Zones ocultas e essenciais tanto para a caracterização dos processos de transferências epistémicas, como para os modelos de representação visual em voga nos séculos XV e XVI.
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